STF julga se crenças religiosas devem influenciar tipo de tratamento oferecido pelo SUS



O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia nesta quinta-feira (19) o julgamento de duas ações que discutem a relação entre crença religiosa e tratamentos de saúde.

O julgamento teve início na sessão de 8 de agosto, quando houve a apresentação do relatório do ministro Luís Roberto Barroso e dos argumentos das partes e entidades interessadas.

Agora, o tribunal deverá definir duas questões centrais: se a fé de um indivíduo pode ser utilizada como fundamento para exigir um procedimento cirúrgico específico e se a liberdade religiosa justifica que a União cubra os custos de tratamentos de saúde diferenciados com base em crenças religiosas.

Ambos os casos envolvem membros da religião Testemunhas de Jeová, que, com base em interpretações de trechos da Bíblia, proíbem a transfusão de sangue de terceiros.

Esses processos têm repercussão geral, o que significa que as decisões tomadas pelo STF estabelecerão precedentes a serem aplicados em todos os casos semelhantes, inclusive os de pessoas de outras crenças religiosas.

Os relatores dos casos são o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, e o ministro Gilmar Mendes.

Casos em análise

Um dos casos é de uma paciente encaminhada à Santa Casa de Maceió (AL) para um procedimento cardíaco. No entanto, a cirurgia foi cancelada porque ela se recusou a assinar um termo de consentimento que previa a possibilidade de transfusões de sangue, caso fosse necessário.

A paciente buscou a Justiça para garantir a realização da cirurgia sem transfusão, mas teve seu pedido negado nas instâncias inferiores.

Quando a repercussão geral foi reconhecida, em 2019, o ministro Gilmar Mendes destacou a “inegável relevância” da discussão, afirmando que “a liberdade de credo deve ser assegurada de modo igual a todos, desde os membros de pequenas comunidades religiosas aos das grandes igrejas”.

No mês passado, o STF ouviu as sustentações orais dos advogados envolvidos no caso. A advogada Eliza Akiyama defendeu que a recusa de sua cliente em aceitar a transfusão de sangue não foi motivada por “capricho” nem por uma “expressão de fanatismo religioso”, mas sim pela sua convicção religiosa profundamente enraizada.

Em 2020, o então procurador-geral da República, Augusto Aras, apresentou seu parecer na ação, argumentando que um paciente tem o direito de optar por um tratamento que não envolva transfusão de sangue, desde que seja devidamente informado pelos médicos sobre os riscos associados.

No entanto, Aras ressaltou que esse entendimento não deve ser aplicado a crianças, adolescentes ou pessoas incapazes, nem em situações que representem risco à saúde pública ou à coletividade.

O segundo caso aborda as responsabilidades do Estado. Nele, a União recorre contra uma decisão que a condenou, juntamente com o estado do Amazonas e o município de Manaus, a custear integralmente uma cirurgia de artroplastia total (substituição de uma articulação) para um paciente em outro estado.

Princípio da isonomia

A União argumentou que a decisão violou o princípio da isonomia, ao conceder um tratamento diferenciado com base em crenças religiosas, e o princípio da razoabilidade, já que qualquer procedimento cirúrgico pode apresentar complicações que exigiriam uma transfusão de sangue, o que poderia comprometer a segurança do paciente.

A repercussão geral foi reconhecida em 2017. O ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, destacou que há um conflito entre a liberdade religiosa e o dever do Estado de garantir um tratamento de saúde universal e igualitário. A decisão deverá equilibrar esses dois princípios fundamentais.

A advogada Mychelli Fernandez, que representa o paciente, argumentou ao STF que o SUS possui a capacidade de oferecer tratamentos alternativos que não exigem transfusão de sangue, sem implicar custos adicionais.

Em parecer apresentado no ano passado, Augusto Aras defendeu que o Poder Público tem a obrigação de custear um tratamento alternativo, desde que esse tratamento já esteja disponível pelo SUS.

Ética médica

Josimário Silva, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e presidente da Academia Brasileira de Bioética Clínica (ABBC), afirma que não há uma hierarquia predefinida entre a autonomia do paciente e o dever do médico. Segundo ele, é essencial considerar as particularidades de cada caso para fazer uma análise adequada.

“Alguns aspectos precisam ser considerados, por exemplo, se a situação é emergência ou não é emergência. Quando tem uma emergência, a prioridade é promover uma assistência que evite a morte do paciente. Isso é um dever legal que temos”.

Silva afirma que existem grupos multidisciplinares, conhecidos como comitês de bioética, que são responsáveis por avaliar o melhor encaminhamento para cada situação específica.

“O médico aciona o comitê de bioética e o comitê tem a função de deliberar, analisar, entender esse caso e a partir daí, ele vai emitir um parecer para que o profissional possa subsidiar a decisão dele. O comitê não toma a decisão pelo médico”.

O professor, autor do livro “Bioética Clínica – Testemunhas de Jeová”, explica que existem alternativas à transfusão de sangue, mas essas opções nem sempre estão disponíveis em todos os hospitais. Ele afirma:

“O sangue não é a primeira escolha. A gente utiliza uma série de outros recursos para não chegar à transfusão. Hoje já existem estruturas hospitalares que disponibilizam alguns recursos que facilitam para o profissional o não uso do sangue. Isso já tem sido feito, inclusive com cirurgias grandes”.



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